segunda-feira, 19 de fevereiro de 2007

OS ENIGMAS EM "MUANA PUÓ", DE PEPETELA



Rosângela M. MANTOLVANI –
Oirentadora: Tânia C. de MACEDO.
UNESP- ASSIS/ 2002

Produzido em abril de 1969, o texto Muana Puó, de Pepetela (Artur Pestana), apresenta-se como um trabalho literário que podemos considerar como híbrido, na medida em que utiliza na sua construção a figuração da fábula tradicional, a estrutura da narrativa e o estilo da prosa poética.

Sua linguagem poética é um dos recursos por meio do qual o narrador organiza uma alegoria aparentemente hermética. Esse caráter de hermetismo, desfar-se-á, porém, à medida que se decifram, na leitura, os implícitos produzidos por essa mesma linguagem.
O texto de Pepetela principia na descrição da “Epígrafe”, a partir da caracterização da máscara tchokuê em direção ao movimento da fábula.

Para organizar a fábula, o narrador heterodiegético articula personagens que correspondem a este gênero literário: corvos e morcegos. Do segundo grupo, destaca um par, os protagonistas da fábula e da narrativa. Estes se encontram inseridos no espaço textual, de forma a simbolizar o mito da origem humana. Na fábula, os protagonistas são morcegos, depois a liberdade os transforma em seres humanos. É possível, também, a leitura que apenas não se viam como seres humanos, mas acreditavam-se morcegos.
O casal apaixonado luta pela liberdade e, em seguida, dirigem-se a Calpe, a cidade mítica. Um novo mundo se lhes apresenta: o futuro, no qual os humanos convivem com um novo modelo social que aproxima-se do utópico, com os elementos do fantástico.

A ausência de nomes próprios para as personagens e sua substituição por dêiticos (Ele, Ela) – muitas vezes, também, eliminados e substituídos pelo particípio do verbo composto, para indicar a condição de macho ou de fêmea – é determinante para que os protagonistas possam constituir-se como seres orgânicos, independentemente do grupo a que pertençam: zoomorfos ou antropomorfos.

Organizada sobre três blocos temáticos - 1) o enigma da máscara, 2) o casal e os grupos zoomórficos e 3) a idealização do futuro – que se inter-relacionam, a construção de Muana Puó oculta, em seus significados polissêmicos, o jogo do claro e do escuro, arquitetando no texto enigmas homólogos aos descritos na face da máscara tchokuê:

Um abismo transparece para lá das pálpebras cerradas. ( O passado – p.11); Olhos do formato da boca,(...) um quase imperceptível vazio entre as pálpebras. (O futuro- p. 85); e Lábios sensuais, húmidos, meigos. O que realça a escuridão angustiante entre eles. (O passado – p. 12) Os lábios são carnudos e húmidos. Entre eles, a solidão de um vazio sem fundo. (O futuro – p. 85).

Estas são algumas impressões subjetivas que surgem na descrição da máscara. Uma outra, que aparece nas duas primeiras descrições: Serena, quase severa, constituída de elementos violentos e incoerentes. Desta forma se apresenta a construção estilística do texto: constituído, vez ou outra por elementos violentos, aparentemente incoerentes, porém, sereno. Podemos considerar como elemento violento, a inversão proposital que o narrador estabelece com relação à alimentação dos grupos zoomorfos.

Fica evidente uma proposital inversão nas funções das personagens, pois na Natureza sabemos que corvos se alimentam de carne putrefeita, enquanto morcegos se alimentam de plantas silvestres. Na fábula, os corvos é que se de alimentam de mel, enquanto os morcegos se alimentam de excrementos. Ou seja, os signos utilizados para referir os alimentos de um e outro grupo zoomorfo são tão violentos e incoerentes quanto aqueles traços observados na máscara
Os vocábulos escuridão, abismo, imperceptível vazio e vazio sem fundo que aparecem como elementos delineados por traços subjetivos do escritor, funcionam como expressões-chaves, espécies de pistas para que o leitor procure nos signos lingüísticos, entre abismos (elipses e interrupções do tema) e vazios (o espaço do não-dito), na escuridão (subentendidos e pressupostos) das metáforas e alegorias, as relações que se insinuam entre os elementos figurativos e as seqüências narrativas. O narrador estabelece o jogo analógico entre a denotação e a conotação. No "Epílogo", o Narrador indica ao leitor, através de uma construção metalingüística, qual o caminho para decifrar o enigma da máscara de Muana Puó.

Há três espécies de observadores [da máscara e do texto]. Os que estudam a máscara fixando-se nos olhos [leitura pictográfica]; Há os que começam pela boca e sobem até os olhos (...) [leitura do signo lingüístico] E uma terceira espécie, talvez os verdadeiros, que começam pelos olhos [signo visual] até a boca [signo verbal] (...) voltam aos olhos para (...) descerem à boca e não mais se libertarem [os que estabelecem conexão entre os signos pictográficos e os lingüísticos].

A leitura de Muana Puó é, também, como a máscara, um eterno retornar, ora ao Passado, ora ao Futuro, porque segundo o protagonista (Ele), o presente não existe, é só o ponto de encontro entre o futuro e o passado. (p. 128).

O espaço é organizado a partir da relação geométrica que se estabelece entre a elipse delimitativa da máscara e o universo elíptico. Nele habitam os protagonistas, os corvos e os morcegos. É o espaço limitado por abismos de arame farpado, criado por Deus para corvos e morcegos: o espaço textual. Tem-se, então, o microcosmo e o macrocosmo, respectivamente. O primeiro, da máscara, é determinante do segundo, cujos contornos e relevo atendem às disposições das formas esculpidas na máscara tchokuê. O macroscosmo é projetado pelo microcosmo. Tanto um espaço quanto outro funcionarão no texto como território do enigma.
A máscara tchokuê funciona, ainda, como símbolo de angolanidade. O espaço da máscara estabelece uma analogia com o espaço angolano. No mundo elíptico e sem nome, a simbologia da máscara tem a função de nomear, através do implícito.

O mundo elíptico é, aqui, um mundo maniqueísta, como os dos contos de fadas, em que o Bem e o Mal apresentam-se evidentes. Esse mundo, controlado pelos corvos, apresenta-se como o mundo da injustiça, pois

Deus criara o Mundo, os corvos e os morcegos. Moviam-se em ciclos de vida e de morte. Os morcegos criavam o mel para os corvos e alimentavam-se dos excrementos destes. (...) Esse mel dava-lhes força [aos corvos] para melhor chicotearem os morcegos, exigindo maior rendimento. (PEPETELA, p.26) .

Os morcegos protagonistas simbolizam os representantes das facções ideológicas em que se dividem os integrantes deste grupo zoomorfo: os que aceitam a submissão e os que não aceitam. Ela representa o primeiro grupo, Ele, o segundo. A forma de submissão imposta aos morcegos pelos corvos é um outro traço violento.

Os morcegos travam muitas batalhas contra os corvos, apossando-se da montanha, um espaço interdito, pois apenas deste ponto é possível perceber uma outra realidade, que não aquela apresentada pelos corvos. A vitória dos morcegos provoca a metamorfose dos seres, e a transformação do mundo. As modificações nas relações entre as personagens surgem como conseqüência da quebra da Ideologia dominante.

A montanha apresenta-se como símbolo de liberdade em seu sentido generalizante: liberdade de idéias e ações. Conquistá-la significa destruir os dogmas e conceitos preconizados pelos corvos, sempre por meio de ameaças de caráter religioso. Ou seja, a montanha representa o ponto através do qual se dissemina a Ideologia que perpassa e movimenta as relações entre os seres do mundo elíptico. A fabulação se estabelece por meio das figuras representativas dos grupos animais: os corvos e os morcegos. O ato de fabular estende-se até o capítulo 8 do episódio "O Futuro": Alguns corvos preferiram ficar. Entregaram as penas e os bicos, arrancaram as garras e depositaram tudo no gabinete dos objetos perdidos. E misturaram-se aos morcegos. (p. 102).
No capítulo 9, acontece a antropomorfização. A dupla de morcegos protagonistas, com características e comportamentos que se assemelham aos humanos, percebem-se, então, homens. A partir deste ponto em que há a desmitificação da fábula, prossegue a narrativa, em tom de prosa poética.
No núcleo temático que mostra "O Futuro", a utopia e o ufanismo estabelecem uma relação dialética com a miséria da condição humana, pois neste mundo em que a sociedade parecia estabilizada e feliz, não havia máquinas que realizassem os sonhos individuais (p.162). Nesse episódio, a máscara é inserida na narrativa como peça de museu e apresenta um tabique imaginário. Esta linha imaginária impede que a protagonista veja o olho esquerdo da máscara.
Indecisa entre observar a facção esquerda ou não, o tempo passa. Quando finalmente se volta para o olho esquerdo, percebe que a máscara tinha um sorriso zombeteiro e profundamente triste. Nesta aparição, a protagonista tem a sensação de que a máscara lhe revela a ironia que se instala: o confronto entre a realização ideológica e a psicológica do ser humano. A protagonista não se resolve emocionalmente, embora a sociedade aparentasse estar saciada no novo modelo social, o socialismo utópico. O protagonista observa que A saciedade, nela, deixava um gosto amargo, inquieto. (p.117). Ele, também, parecia não se resolver dentro do novo modelo social, tanto ansiado, pois expressa seu descontentamento: Não sou deste tempo! Não nasci para este mundo! Sonhei tanto com ele que, quando acordei, o mundo tinha ultrapassado o sonho, tinha-me ultrapassado. (...) Nada posso contra o irremediável... (p. 126)
O vínculo amoroso das personagens não é suficiente para mantê-los unidos. A questão ideológica interfere, a forma interior do ser sobrepuja a relação emocional.
A idealização do mundo elíptico em "O Futuro" não prevê apenas o que a sociedade da revolução concretizada pelos morcegos poderia oferecer. Excede as fronteiras do possível e idealiza sistemas que inserem-se no plano do fantástico. Assim, elementos radioativos servem apenas como matéria-prima para fabricar brinquedos ou nas pesquisas de doenças oftalmológicas, o único tipo de doença ainda não extinta no mundo idealizado.
É fundamental, aqui, observar como a temática da cegueira das populações se instala de forma alegórica como uma incapacidade geral dos povos de analisar as benesses dos valores utópicos a longo prazo. Assim, a projeção de um estado nacional independente e suas benesses posteriores não poderiam ser percebidos por todos.

As relações pertinentes ao materialismo são organizadas a partir de alguns pressupostos teóricos marxistas, representando, de forma metafórica, o último estágio do socialismo: uma sociedade que se auto-gere, sem a necessidade de pessoas para determinadas funções, como no caso do depósito de alimentos, do qual cada pessoa retira o que lhe é estritamente necessário, sem que haja um controle.
Surge a máquina de pensamentos, que é capaz de captar os desejos sociais das pessoas e, quando a maioria decide, os fatos se realizam, sem que a minoria seja contrariada, pois haveria um local no mundo elíptico onde os fatos suceder-se-iam de acordo com o desejo das minorias.

O protagonista retorna ao local de onde surgiu: as areias do deserto. É coberto por estas, enquanto sua mão que fica exposta no relevo, transforma-se em papoula roxa, com uma lágrima dentro. Ela, perambula pela vida, do saco ao museu, buscando olhos de bambi. Fracionada entre o material e o místico, entre o futuro e o passado, busca nas duas faces da máscara as explicações das relações humanas e, principalmente, sua identidade.

É possível observar que Muana Puó oferece ao leitor um trabalho profundo na questão da linguagem utilizada em sua estrutura, além do trabalho com o enredo, com a alegoria e a ideologia.
A estrutura de construção de Muana Puó permite perceber que, como toda fábula, o texto utiliza figuras portadoras de características humanas. Este, não é uma exceção. Ocorre que, no texto de Pepetela, há um desvendamento, a partir do enunciado que deveria encerrar a fábula e servir como moral da fábula. No entanto, a partir desta moral, o narrador articula uma narrativa que estabelece e revela o que esteve sempre implícito na fábula. Enquanto o leitor produzia associações entre a simbologia animal e os seres humanos, o narrador de Muana Puó, desconstrói a fábula, antropomorfizando os protagonistas. Antes mesmo que se percebam humanos, as personagens zoomorfas têm mãos e colo. Correr com ela pela mão e depois cair, ofegante no seu colo. (p. 29).

Muana Puó, busca construir, de forma alegórica, as faces de um mundo que se origina nas tradições de um povo, das quais faz parte uma máscara tchokuê e tudo que ela representa: a alegria e a dor da circuncisão. Através de muitas elipses, dos vazios e da escuridão dos significantes, articula significados de forma a representar a luta de um povo em direção à liberdade, bem como a restauração de antigas ideologias e a luta individual dos seres humanos em busca de seus próprios desejos e sonhos.

Os signos projetam sombras, porém é como subir ao topo da montanha e perceber que é possível observar os dois olhos ao mesmo tempo, então, observar que os pontos centrais do diâmetro das elipses estabelecem um triângulo em relação ao ponto central da elipse da boca da máscara. Esse triângulo, segmentado pela própria altura formará um triângulo retângulo que, em rotação de base, dará origem a um cone de revolução.
Pepetela é capaz de projetar em um texto produzido em 1969 não apenas a Revolução pela liberdade colonial, como a divisão entre a ideologia da direita e a ideologia da esquerda, bem como a luta entre colonizados e colonizadores. É possível compreender a construção de Muana Puó como um "texto aberto", que se presta a inúmeras interpretações. Porém, somente reconhecendo as tradições e a história do território angolano torna-se possível compreendê-lo em profundidade.
Por isso, a montanha é o espaço interdito no texto, pois somente em seu "alto" seria possível estabelecer a revolução. É preciso lembrar, também que a elipse é uma figura resultante do cone em revolução, de acordo com o teorema de Dandelin. (CARVALHO, 1969, p. 170). Essa passagem pode ser interpretada, também, como uma alusão às montanhas centrais dos territórios angolanos, onde abundam diamantes, material de cobiça internacional e pivô de disputas.
A revolução em Angola representa, então, o enigma oculto, entre o vazio sem fundo, no abismo e na escuridão dos signos lingüísticos e visuais que aparecem no texto e na máscara de Muana Puó, a rapariga que dança na festa da circuncisão.

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obs: ESTE TEXTO FOI APRESENTADO EM CONGRESSO EM OUTUBRO DE 2002